O misterioso Austerlitz é um judeu estudioso da arquitetura e do urbanismo da era capitalista, que através de pesquisas vai de encontro aos terríveis acontecimentos do seu passado.


Sinto dificuldades em escrever sobre Austerlitz (2001) de W. G. Sebald, e me remeto até suas páginas
em um momento em que o personagem principal homônimo relata ao narrador suas dificuldades de colocar no papel aquilo que saí tão espontaneamente de sua cabeça através das palavras.  Austerlitz, ao contrário do que é dito pelo seu personagem, é um livro fácil de se ler, mas que apesar disso pode cansar o leitor pelas extensas descrições de catedrais, ferrovias e fortes, já que Austerlitz é formado em arquitetura com especialização na sua história, então a obra tem como pano de fundo a paisagem arquitetônica capitalista europeia, em especial a francesa e a tcheca, onde o autor traça paralelos com seu passado remoto.

Auterlitz é quinto e último romance publicado em vida por Sebald, e acho que só foi publicado por aqui pelo Brasil uns dez anos depois de escrito, e eu só consegui compra-lo agora, dez anos depois de publicado. Então estou com vinte anos de atraso na leitura. Mas não faz mal, o livro é atualíssimo, e poderia até ser adaptado para o Brasil, no caso de um órfão que depois de muitos anos sai em busca do que aconteceu com os verdadeiros pais no período do terror da ditadura militar. Só que em Austerlitz, o terror foi o nazismo, e os acontecimentos, propositalmente desconhecidos pelo personagem principal, começam a tomar forma a partir do seu próprio nome, que teve que ser mudado para Dafydd quando ele tinha apenas três anos de idade com a tomada do seu país pelos alemães.

A história toma corpo a partir dessas lembranças, em que foi colocado pelos pais em uma carroça cheia de outras crianças a caminho de qualquer país vizinho disposto a lhes dar o mínimo de segurança. Sem entender o motivo de ter sido abandonado, Austerlitz se torna uma criança introvertida e triste, que aprende a esquecer seu curto passado com um velho padre galês e sua esposa doente: se esquece da sua língua materna, erradica memórias, e seu subconsciente cria uma barreira sólida para qualquer coisa que o remeta à sua vida anterior, e embora ele tenha o básico para se manter vivo, não tem o amor dos seus novos cuidadores, que com o tempo passam a ser seus pais.

E é no estudo e na leitura que o menino acha seu refúgio. E através de pesquisas descobre seu verdadeiro nome, e anos depois começa a montar todo quebra-cabeça cujas principais peças estão perdidas e enterradas no subsolo mais obscuro de suas memórias ou em arquivos há muito tempo incinerados pelos culpados. E é aos poucos, nessa incessante busca, que ele entende porque sempre se sentiu um estranho à vida, porque era invadido diariamente por lembranças difíceis e inexplicáveis.

O personagem de Austerlitz chega as minhas mãos em formato de literatura em um dos momentos mais negros do nosso país para me mostrar que poderia ter sido eu. Meus pais vivenciaram a ditadura, meu avô era opositor. Eu poderia estar contando uma história de um órfão mandado para um pais vizinho e criado por outra família, que 21 anos depois retorna ao Brasil com pequenas lembranças ácidas de uma vida que não se concretizou em sua plenitude por razões políticas. E Austerlitz é isso, um exercício de pensamentos que nos faz travar em algumas de suas páginas e olhar para o frio branco do teto e viajar em uma história recendo do Brasil, que custou a sair de um pesadelo para cair em outro ainda sem perspectiva de acordar.

Existem livros e livros, Auterliz e daqueles que dão desassossego, incomodam e nos fazem parar para respirar, abrir uma cerveja e sair andando pela rua para desanuviar os pensamentos e saber que felizes são os que nada sabem.

Nota 10

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